L'Irlandais

A Rita tinha vinte anos.
As pálpebras, ligeiramente descaídas sobre os imensos olhos castanhos, contradiziam, pela sensualidade, o sorriso aberto e despreocupado para a vida.
Tinha entrado em farmácia e repetia-o – com o orgulho e a confiança que perduram até ao terceiro semestre – a propósito de tudo, quase tudo ou quase nada.
Sabia inglês porque era de farmácia, outra língua não visto ser de farmácia, música nem toda pois era de farmácia e por aí em diante: a justificação dos seus gostos, triunfos e até da sua ignorância sobre o que não deveria saber.
O grupo de amigos tinha, curiosamente, decidido ir… à farmácia.
Ficámos as duas no meio do vento.
Entrámos no café e já recompostas do temporal lá fora – com as mãos à volta da chávena e o contentamento do conforto à janela da intempérie – começámos a falar:
- Sabe? O Beckett vinha aqui muito.
- Não sabia. Sou de farmácia.
- E gosta?
- Do Beckett? Não sei.
- Não, do curso. Gosta de farmácia?
- Ah! Gosto muito. Beckett não conheço.
- Claro que conhece! Passava aqui tardes perdidas com os amigos… Olhe: À Espera de Godot!
- Ele esperava o Godot?
- Não, é uma das suas obras mais conhecidas. Uma peça de teatro: À espera de Godot.
- Ah! E quem era o Godot?
- Não sei…
Estava com sono. Não tive paciência para lhe dar as várias interpretações, nem fôlego para a esclarecer que Godot não tinha chegado a aparecer, nem coragem para dizer que nunca apareceria.
O suficiente ainda para não saber. Para não saber o que dizem. Para não saber o que é que as palavras que diz dizem. Diz? Segrega. Dizer melhor pior segrega. O que dizem as palavras que segrega. O que o dito vazio. O dito obscuro. As ditas sombras. A dita sede embrionária de tudo. Suficiente saber não se poder saber.
- Só lendo, então – acrescentei – ou melhor ainda, neste caso, vendo a peça.
O silêncio sentou-se confortavelmente à nossa mesa.
Sorrimos. E nesse momento de comungada solidão, os outros entraram transidos de frio e ebulientes de novas palavras, ideias e projectos "para passar o tempo".
Quero, aqui recordá-lo no exacto dia em que passam quinze anos sobre a sua morte.
Porque na duração do caminho para ela – de forma assumidamente solitária e até com a eloquência do silêncio – o homem que não tinha "jeito para a felicidade", troçou da tragédia e deixou-nos dias muito felizes.
E, para quem assim não pensa, dou-lhe a palavra:
O meu trabalho é uma matéria de sons fundamentais (gracejos à parte) elaborados da forma mais plena possível, e eu não aceito a responsabilidade por nada mais. Se as pessoas querem ter dores de cabeça no intervalo das harmonias, deixá-las com elas.
E que se provejam com a sua aspirina.